O céu, de um azul quase naval, é um quadro que se encontra ainda na fase inicial da sua concepção, sendo pintado por um artista meio sonolento. Possui, dispersos, pinceladas de nuvens lilás traçados com desleixo. Na linha onde ela inicia a sua separação com tudo quanto é terreno, vislumbra-se um brilho ténue e alaranjado que pouco ou nada deixa antever as inúmeras possibilidades que o dia depositatrá nas nossas mãos.
Nas ruas o vento frio quase que não encontra qualquer obstáculo humano durante o seu jogging matinal. Compassadamente vão-se apagando as últimas lâmpadas dos postes de luz. Hoje, são poucos os cafés que se encontram abertos, porém nem por esta razão há maior concentração de individuos neles. Nos transportes públicos as pesoas em geral buscam soldar-se o mais possível nas suas cadeiras de modo a gerar mais calor nos seus corpos. Por outro lado, alguns individuos menos preocupados procuram tão só terminar o sonho enterropido pelo grito sempre pontual do despertador.
Chego ao trabalho três minutos depois das oito, ligeiramente atrasado como sempre. Apresento-me junto á supervisora cumprimentando-a. "Ah!, chegaste. Vá, depressa, temos muito trabalho a fazer! Senta-te no teu lugar, se faz favor. Olha, não precisas ligar o computador que eu já o fiz. Se não te lembrares de alguma passe chama-me, 'tá bem?", sauda-me, simpática.
Ocupo o meu posto. Antes de começar a trabalhar circunvagueio os meus olhos pelo espaço que me rodeia: reparo que somos poucos; reparo que os indicadores de satifação que estão expostos nos vários ecrãs espalhados na sala, apresentam os valores máximos; reparo que os que me cercam têm quase todos uma expressão mais descontraida estampada no rosto... Este cenário reconforta-me, de certa forma; pois denucia que as tarefas que me agurdam não são de difícil resolução.
As chamadas vão marcando o ritmo da passagem do tempo. Anunciam-se as previsões de entregas, anunciam-se a chegada dos motoristas, auxiliam-se estes quando não encontram com facilidade a morada dos clientes e contactam-se os últimos a pedido dos primeros; registam-se os levantamentos de artigos cancelados, reagendam-se as entregas não efectuadas, fazem-se conferências, atentam-se as reclamações dos clientes, procuram-se a melhor solução para todos os problemas.
Apesar do fluxo contínuo de trabalho, o ambiente de hora em hora vai-se tornando cada mais festivo. Um grupo de supervisores entra no escritório com barretes vermelhos nas mãos e distribuem-nas pelas cabeças dos colaboradores. Trocam-se sorrisos. Alguns motoristas acabando mais cedo as suas rotas enviam mensagens saudando e agredecendo toda a equipa a ajuda prestada neste dia e durante todo o ano.
Porém, quando tudo parecia correr bem, de súbito assalta-nos uma notícia. "Epa, falei agora com o zeferino e ele informa que acabou de ter um acidente... pa, não sei como aconteceu, mas homem está a chorar cuitado", diz um colaborador de voz nasalada. Em cada face o riso vacila, todos ficam preocupados, suspende-se o clima alegre por momentos. Os supervisores alarmam-se e reunem-se a volta de um computador e de um telefone; entram em contacto com o motorista de modo a saber o estado da sua situação, analisam a sua rota e pedem que nos ocupemos com os clientes que ainda restam na sua lista de entregas, procura-se a melhor resolução por forma a satisfazer as diferentes partes envolvidas na situação: o motorista que não está no melhor momento, o cliente que espera o seu artigo que possivelmente será a sua prenda de natal á um familiar ou á um amigo, a loja que fez a venda do artigo e que poderá perder a sua credibilidade diante deste mesmo cliente.
"Tchii cuidado, é preciso ter falta de sorte. Logo no Natal acontecer isto ao homem", exclama uma mulher sentada no meu lado esquerdo. Com sorte tudo acaba bem. Finalmente enceram-se todas as lamentações e grandulamente o júbilo vai tomando novamente o espirito da equipa.
Chega a hora das despididas. Passam quinze minutos depois das duas da tarde. Á medida que vão restando menos entregas a gerir, vamos abandonando o escritório a conta-gotas. Aqueles que cedo vão partindo deixam aos outros os seus mais sinceros votos. "Ô! Bom natal, até segunda. Forte abraço a todos", gritam ao sair.... Aceno e aguardo que a minha vez também chegue. Restam apenas duas entregas a serem feitas e todos com olhos postos no ecrã do computador esperamos pelo sinal dos motoristas. "Esta cena devia ser todos os dias", penso para comigo mesmo entretanto. E perante a perspectiva das duas mil entregas que terão que ser geridas na segunda feira, lanço este comentário, em jeito de brincadeira, ao meu colega de lado: "pa, o incrível que toda esta gente que anda hoje muito alegre vai estar com uma cara de fudido na segunda, meu!", digo-lhe. "Memo a sério, cheval!", responde com um sorriso aberto. "É bom que o natal nos compense", acrescenta instantes depois.
Por fim, é chegado a minha hora. Antes de eu sair restava apenas uma entrega a ser feita. Era um daqueles casos especiais que obrigava a empresa a usar os últimos trunfos de modo a satisfazer as exigências do cliente. Da minha parte, desejo o melhor ao motorista; que ele faça bem a entrega do artigo e que ele próprio chegue bem entregue junto dos seus. Despeço-me da mesma forma que os outros o fizeram e abandono o escritório.
24 de Dezembro de 2010